sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O encontro

Para ser lido ao som de primavera de Zé Miguel Wisnik


Como numa manhã de julho em que sol nasce devagar e as aves pintam longamente suas danças sobre o céu, como uma música que se ouve ao longe e que traça o ritmo das ondas. Mesmo um livro que se lê na secreta intenção mística de se saber como será o restante do dia. Como numa manhã de primavera, eu deslizo na estrada que me conduz ao aeroporto.


Aqui, neste veiculo em movimento enumero as recordações não vividas e o pouco do muito que poderia ser. Por vezes, entre o asfalto e a neblina, estes pensamentos me vêem como um arrebatamento sem dor. Nesta mesma rua se corporifica o meu desejo de neste instante ser nada, baixar os faróis em estrada florescida, na companhia de Ana, enquanto o dia surge implacável; poder enxergar pelas mãos...


Poderia ser mais um dia não fosse o amor, Eros e suas flores, poderia ser objetivo e fraco não fosse essa vertigem quando se precipita a chegada. Poderia mesmo ser tênue. No entanto, os galpões se erguem e pousam no céu sua imponência, a mesma que me distrai na ante-sala do encontro com Ana.


Ao sair da maquina quem me saúda é o barulho interminável de jatos cortando a neblina, uma música azeda, pessoas acenando para o céu. De longe é possível ver os rastros dos que passam dos que chegam... Feliz de mim, pois não vim me despedir de ninguém. Sob passos frios e olhar longe, pretendo ser quase invisível neste instante, pois a atmosfera de tédio, e o horror da espera se precipitam nos passos abafados, no olhar sonâmbulo, nas filas...


Vozes pelos corredores se naufragam e perdem-se no ar. Mais adiante, as maquinas não admitem risos.


E, então, Ana dissera aquela frase, sem nenhuma expectativa, assim de repente. Ana dissera aquela frase, a nossa frase, secreta frase... E eu ali perdido, e eu ali sem saber. Avistou-me desde o primeiro momento, gostava de me observar. Como uma música silenciosa, sua voz, que reconhecera imediatamente, me leva em seu bolso.


“Você me aproxima de mim”, confesso ao abraçá-la. E de novo, entre risos, aquela frase me transpassa o peito: a voz de Ana, como uma lança. A sorte que o amor é invisível.


“Eu já disse hoje que te adoro”, ela repete nossa frase como um prêmio, uma recompensa, um segredo...


Depois me explica longamente porque não me abordou imediatamente, porque me deixou naquela selva escura, alimentando um rio de saudades presente numa foto três por quatro e confessa ansiar por me beijar com os olhos, decorar os passos, os traços, a expressão, sem servir para nada, apenas para regar seu amor... Porque o primeiro beijo sempre se da com os olhos.


Então ligo o automóvel e deslizo pela estrada...


Agora tudo é caminho de volta. É chegada a hora de ser, depois de ter. É quando Ana refaz os passos da viagem: o céu cinzento, aquele jardim, os passeios crepusculares, o horizonte que se espelha na água, os bancos da praça e as suas fotografias espalhadas pela minha vida, as mesmas que agora ela recorda em voz alta. A mesma que me faz cantar longamente: “eu já disse hoje...”. A mesma que sopro em dias como este, em dias de primavera.



5 comentários:

Anônimo disse...

Tu és sempre uma resposta....
Fernanda

Anônimo disse...

A Ana, a quem tú chamas...
estranhamente branda, não pode conter algumas lágrimas.
O Tempo que se fez...É estranho pensar q ele sempre tem o controle...nunca esta em lugar inadequado.E a resposta que sempre se espera de um novo começo? Este muitas vezes se finda e deixa a sensação do perdido.O que se levar disto?
Mas novos começos sempre ocorrem...E não deve-se fugir.Mas...Sempre jogamos demais.E desvencilhar...se torna cruel...ou fresco..ou...
Então , e não somente por isto, nem pensamos em desatar laços eternizados..por outros que , inevitavelmente, se tornarão.

Não me pergunte o que é isto...não sei se saberia responder.Quem sabe até devas tentar...enfim...
nyah

Anônimo disse...

Nossa...eu juro que não estava em estado alterado de consciência quando escrevi o comentário acima..mas...
confesso que parece..
nyahahah

Anônimo disse...

POETA,
BRINCAS COM TUAS PALAVRAS DE ADORNAR O VAZIO QUE NOS CERCA COM SEU PESO INSUSTENTÁVEL E DURA FACE,
BRINCAS COM TEUS VERSOS DE CRIAR UM MUNDO, CUJAS LINHAS DE COMPOSIÇÃO DEDILHAS NUM ESTRANHO ESTADO DE APAIXONAMENTO...
LIANA FIGUEIREDO

Unknown disse...

André!
Mar DeAviz!
é surpreendente que um jovem Poeta traga em seu texto percepções tão próprias da longevidade. Se eu fosse uma pessoa mística ou inclinada a acreditar em outras vidas e reencarnações.. diria que tu ja vivestes muitas vidas. Porque, de fato, dizes a palavra com a força e o domínio de quem já vivenciou e experienciou os amores e as dores dos amores, de quem já viveu todos os laços de afeto e de desafeto.
Teu texto traz a maturidade de quem já vive, há muito,na maturidade.
É fascinante como corporificas as coisas.. como consegues atribuir organicidade aos objetos e melhor ainda, quando consegues, sutilmente, coisificar os sentidos humanos, suas causas e seus efeitos... lançando o leitor numa fronteira semântica, conduzindo-o a novas percepções.
É como se descortinasses as palavras.. Um desvelar sedutor... Ofertas ao leitor uma fotografia espectral de imagens de palavras vivas que aos olhos do leitor ganham novos significados e novas significâncias.
Sabes o que escreves e sabes do propósito de teu ato de escrever..
e se queres saber ..dispenso a música.. teu texto tem mais que ritmo - tem a construção harmônica de uma boa e sedutora música.
Tive um grande prazer em escutar esta bela fotografia em forma de prosa poética.

À propósito.. " ja te disse hoje que adoro.."
Wanda Monteiro