domingo, 24 de março de 2024

Como a psicanálise mudou a sua vida?


Entrevista que dei ao canal palavras no corpo. Papo instigante e muito bem conduzido por Roberto Amaral (psicanalista, escritor e pós-doutor em estudos literários).

domingo, 17 de março de 2024

Considerações sobre o luto em Cinzas do Norte

 

A literatura é uma antiga expressão da busca humana em torno da decifração da vida e o que lembramos já é ficção. A pulsão reside nessa busca. Escritores tecem narrativas enquanto os leitores vibram por se sentirem agraciados ao reencontrar suas histórias ilustradas pelo arrebatamento da beleza estética e de algum modo relacionar suas histórias pessoais com as dos personagens.

Talvez seja oportuno pensarmos na perspectiva freudiana sobre a arte e a literatura, pois não se trata do crítico especialista circunscrito no circuito acadêmico clássico, porém, o psicanalista que comparece. É o analista Freud que submerge, tendo a iluminação criativa como uma aliada no desvelamento de nuances psíquicas, ou seja, talvez os poetas estejam em vantagem neste devir, tendo o psicanalista como aliado no percurso de elaboração que nos conduz a uma espécie de poesia prática. Ou seja, as singularidades psicológicas da obra literária nos ajudam na compreensão das tensões psíquicas.

Hoje, penso e releio Cinzas do Norte, do amazonense Milton Hatoum, romance de densidade histórica com nuances tensionais que abarcam o período da ditadura militar no Brasil, focando nas relações do personagem central, Mundo, e suas conexões parentais em conformidade com a sua sensibilidade singular que abarca questões de ordem políticas, ambientais, estéticas, sintomáticas, afetivas, entre outros aspectos interessantes. 

O próprio significante cinzas nos remete a desconstrução simbólica e nos coloca diante da temática dos lutos indentificatórios, ao proporcionar um diálogo interno com as próprias memórias do autor. 

Livro furtivamente autobiográfico relata a luta de Mundo, Raimundo, sob ecos de uma voz totalitária simbolizada por um pai opressor e de uma sociedade que não consegue encaixar o menino artista em seu seio, por não se identificar com essa “aberração”. Há um sofrimento laborioso e extenuante que dura a vida inteira. 

Nesse sentido, há uma alegoria do personagem central com a região amazônica, uma comparação rica que nos mostra o quanto o fazer artístico enriquece nossa perspectiva científica, bem como, que os saberes são grandezas complementares e não sistemas hierárquicos. 

Os lutos são sutis e nunca realizados de forma plena, o que justifica a melancolizacão dos personagens, nas vestimentas, na miséria humana, nos detritos e na destruição do espaço urbano e simbólico, na destituição de um projeto verdadeiramente amazônico e na assimilação do modelo desenvolvimentista associado ao contexto dos “grandes projetos” ditatoriais. Essas perdas sequer são elaboradas desembocando no ódio paralisado, numa espécie de síndrome do pânico social, eclodida a partir de uma agressividade represada.   

O personagem central, Mundo, como alegoria de uma região nos coloca frente a frente com a temática central dos lutos identificatórios. Diante de uma percepção sutil, de um desmoronamento simbólico que o faz adoecer de muitas perspectivas, corroborando uma analise que nos faz constatar que os lutos das identificações e suas consequências complexas não foram sequer assimilados, nomear essas perdas é um trabalho árduo e passa pela elaboração do passado, pois, sem esse trabalho, fatalmente o investimento futuro fica comprometido. A estranha trama que percorre o personagem central é marcada pelas narrativas falsas, inverídicas, cujo o centro narrativo é marcado pelas identificações negativas, um desvio libidinal que nos assombra pela inaptidão simbiótica do personagem com a vida, com o “mundo”, cujo único resgaste possível é a fuga constante, uma fuga que esbarra na certeira objeção que não há caminho possível, diante de um luto suspenso, tendo como única morada sua própria casa interior, naufragada pelo ressentimento. 


Nenhuma dor resiste a uma história de contamos sobre ela, dai reside a força da literatura e das Artes como um sistema de riqueza interpretativa, ilustrada como um estado de poesia. Talvez, essa reflexão nos ajude na percepção das coisas que querem ser percebidas.  Sim, as coisas querem ser percebidas, nos aponta Rilke:


Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. 

Tudo isto era missão”.


(texto resumido)

domingo, 23 de setembro de 2012


Para ler o quero ler
Teria que escrevê-lo
Mas não sei escrevê-lo
Ninguém sabe escrevê-lo



 

domingo, 6 de março de 2011

Retrospectiva 2010


Três Filmes: Tropa de Elite 2 ( José Padilha), O Sol do Meio Dia ( Eliane Caffé), Ilha do Medo ( Martin Escorsese)


Três Shows: Funk como Le Gusta ( Hangar), Cidadão Instigado ( Se Rasgum), Sergio Molina e Mirian Maria – com letras inéditas de Itamar Asumpção (Teatro Margarida Schivazapa)


Três Livros: 2666 (Roberto Bolano), Ensaios filosóficos (Benedito Nunes), Em Alguma Parte Alguma (Ferreira Gullar)


sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Uma retrospectiva corpodebaile para 2009



Três Filmes: Paris (Cédric Klapisch ), Caos Calmo (Antonello Grimaldi, adaptado do livro homônimo de Sandro Veronesi), Entre os Muros da Escola (Laurent Cantet).


Três Shows: Caetano (Assembléia Paraense), Nação Zumbi (Se Rasgum), João Bosco (Hangar).


Duas exposições: Uma Ponte Sobre o Atlântico (Pierre Verger, MABE), 100 x France (100 fotografias conservadas na Biblioteca Nacional da França, Casa das Onze Janelas)


Três livros (estrangeiros): Refrão da Fome (Jean-Marie Le Clézio), Estrela Distante (Roberto Bolaño), Cenas da Vida na Aldeia (Amós Oz).


Três livros (nacionais): O Albatroz Azul (João Ubaldo Ribeiro), A clave do poético (Benedito Nunes), O Seminarista (Rubem Fonseca).


segunda-feira, 18 de maio de 2009

Pai e filho



Quando os teus olhos se fecharam

na respiração da noite profunda,

estranhamente nasci.


Nasci predecessor de tua ortografia.

Do olhar mais que o beijo.

Da gratidão devota de uma fruta amadurecida.


O filho que não fui

estende-se alem do nascimento

para não conter a

necessidade das lagrimas,


fareja sonhos inacabados

no agasalho do que ficou no armário,

vencendo o frio

na eternidade das roupas esquecidas.


Perecer-me junto a ti

ou revelar-me na lembrança?


Encontrar asas no mar é sentir seu repouso.


E quando as ondas pousarem

seu dorso sobre as rochas

volto, como bagagem extraviada,

para o cosmos de teu passo envelhecido.


No naufrágio,

cada vento em parede se desloca.


As garças engolem a altura do arco-íris

ao esquecer-se no rosto das nuvens.


Nessa folha campestre,

erguida por tuas mãos,

Levo à tua forma definitiva

uma gota de orvalho.


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Não era pra ele entender ( exercício de conto)


O vi pela primeira vez na praça XIV, enquanto esperava a condução. Encostada na parada com os livros sobre o peito, em plena Avenida Nazaré,vi aquele rosto estranhamente familiar, de uma beleza leve e que me deixou um pouco nervosa. Vi que seus olhos eram claros e luzidios. Ali, naquele dia mesmo o conheci.


Ele tirou minha virgindade. Transamos no meu quarto, sob uma chuva fina de carnaval, enquanto minha família viajava para o sítio, uma penetração lenta e indolor, gostosa e calma, e pelo resto da madrugada ele ficou incansavelmente acariciando o meu corpo e venerando tudo, os peitos que eu julgava serem pequenos demais, a bunda que eu temia ser mole, meus pés tortos e detonados pelas aulas de dança, minhas pernas igualmente finas, eu tinha medo de como os homens julgariam meu corpo, isso me dava uma angustia e me limitava muito nos relacionamentos e ele me desmentiu logo na primeira noite de cama. Na primeira vez que fizemos sem camisinha eu estranhei aquela porra dentro de mim, esporeando o colo do meu útero, mas depois ele foi me conduzindo, até quando eu gozei; primeiro ele riu, mas depois me beijou muito e ficou acariciando as minhas costas, sentei-me sobre os meus tornozelos e ele viu aquilo escorrer, me sentindo ridícula, e disse Calma assim tu vai sujar todo a tua cama. Ele me trazia conforto, quando olhava pra mim demoradamente eu ficava nervosa e perguntava o que era ele apenas ria e dizia me beijar com os olhos, depois me levava pra passear. Um dia me pegou na faculdade de imprevisto e me levou a um lugar no alto de um morro, eu adorei a surpresa, e pediu que observasse as cores. Eu fiquei tão segura daquele cara ser meu e gostar de mim, então ele disse que aquilo era o que ele achava mais bonito em toda cidade. Dia desses estávamos num bar e passou uma menina vendendo flores, eu olhei aquilo e por um instante temi que ele me oferecesse, atitude que eu acharia estúpida, eu odeio essas cafonices e romantismos exagerados, mas não, quando ela se aproximou, ele recusou e disse mais: Eu espero que tu nunca esperes que eu te dê Rosas. Não éramos de todo iguais, gostávamos de bebidas diferentes, não concordávamos entre marcas de cerveja, autores, comidas; e cinema, nós gostávamos.

Essa liberdade de opiniões me seduzia, ele nunca me forçou a aceitar ou mudar uma questão minha, até quando chorei na frente dele batendo sobre os seus ombros com raiva, respeitava minhas mudanças bruscas de humor, minhas crises de ansiedade com total desenvoltura e me dizia sereno enquanto enxugava o meu rosto, sobre a toalha mais limpa, que não tinha mais essa ilusão romântica de achar alguém perfeito, que eu era uma pessoa normal e que nada iria deixá-lo triste naquele dia, então chorava mais, e ele me limpava com um gesto de lamber o meu rosto e engolir as minhas lagrimas, compartilhando minhas angustias com abraços calmos e duradouros। Um dia depois de brigarmos fui a uma festa e traí-lo, naquele momento tive uma chance de testar sua tolerância. Enquanto descrevia o enlace, a pista de dança, as caricias com o rapaz, ele disse estar excitado e nos beijamos e transamos a noite inteira e eu gostei. No dia seguinte disse achar natural o interesse fora do relacionamento, me beijou e disse estar tudo bem. Chegou um momento que essa tolerância me cansou, me convenci de que necessitava de um pouco de ódio, provocá-lo de modo brusco, mas não funcionou, ele aturou meus porres estridentes, meus berros na rua e respondeu a altura a todas as minhas indagações sem sentido. Daí resolvi terminar, mandei ele a merda e até nessa hora ele foi compreensivo, enquanto acendia o terceiro cigarro, me abraçou longamente e disse ir embora naquele momento, enquanto se levanta disse entender que seu amor incondicional me agredisse, mas que já não era a mesma pessoa, quando ele cruzou a porta eu corri e segurei-lhe os ombros ele virou-se e me deu um tapa no rosto, e até nessa hora ele foi aquilo que eu esperava. Mas não era para ninguém entender...




segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Uma retrospectiva andreísta para 2008:


Três filmes - Paranoid park (Gus Van Sant), O beijo roubado (Hong Kar Way), Vicky Cristina Barcelona (Wood Alen)

Três espetáculos de teatro - Por Elise (Grupo Espanca de BH), Angu de sangue (Coletivo angu de teatro, PE), Shi-Zen, 7 Cuias (Grupo Lume de teatro, SP)

Três shows - Edu Lobo (Hangar), Ivan Lins (Hangar), Toninho Horta (largo do Carmo).

Três exposições - Finisterra (Mariano klautau filho, MEHP), Redesenho (Simões, Fundação Antar Hohit), A luz do sol (PP Condurú, Casa das Onze Janelas)

Três livros (estrangeiros) - Putas assassinas (Roberto Bolaño), O Passado (Alan Pauls), O Homem Lento (J.M. Coetzee)

Três livros (nacionais) - Canalha (Fabrício Carpinejar), Cordilheira (Daniel Galera), Memórias Inventadas: A terceira Infância (Manuel de Barros).


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

1. O silencio ( primeiro capitulo do romance...)



Todas as noites, em meio à neblina, Avalor e Flora saiam a perscrutar a madrugada. Como charretes perdidas no tempo, deliciavam-se com o clamor furtivo da cidade e seus mistérios.Após os cuidados de praxe e a exígua tarefa domestica ambos montavam suas bicicletas e abraçavam o mundo. Passara-se um ano desde a primeira vez em que decidiriam pela entrega de pizzas na noite madrilena. Em meio às peripécias da cidade, embriagados de uma vitalidade inesperada o casal se via por entre vitrines sem vida, pela cercania dos bairros afastados onde as casas, já sem vida, adquiriam a forma de semblantes adormecidos.

Perto do chafariz Bizâncio, o cheiro das açucenas brancas se misturava ao perfume doce e sereno da esposa. Então Avalor sentava-se no chão, fechava fundos os olhos e pensava longamente em mais uma noite vencida e degustada, sobre o manto do dia, que tímido, mostrava-se deliciosamente. Há muito, adquirira hábitos noturnos, desde os remotos anos de chumbo descobrira-se inclinado a contemplação noturna. Sem saber ao certo como lidar com as constantes crises de insônia acabou por fim a entregar-se deliberadamente ao convívio amical das noites brancas. Desde que chegara a capital espanhola, há trinta anos atrás, nosso herói tomara para si a tarefa de sempre ir à busca da vida. E em dias de entusiasmo chegara mesmo a afirmar ser a vida um animal perigoso, cujo tratamento passaria pelo domínio sereno e claro, como quem adestrasse um cavalo embriagado.

“O silencio da noite é o álibi dos sonhos” sussurrou Avalor, enquanto retornava pelo florido bairro de Aschival. Se fosse poeta iniciaria um verso desta maneira, entoando a alvorada em toda em sua leveza e mistério.

Enquanto olhava a neblina cair lenta e silenciosamente, como num sonho, nosso poeta penetrou longamente em um devaneio a muito esperado e profundamente desejado; contaminado pelas lembranças disformes da infância, ele se rendeu ao otimismo momentâneo e até arriscou acreditar estar perfeitamente à vontade nesta cidade. Mas momentos depois ele sentiu um pressentimento ao passar pelo mercado municipal que não sentia fazia muito tempo e mergulhou no jardim abarrotado da casa repleto de rosas brancas e jasmins.


domingo, 11 de janeiro de 2009

Borrasca


O inverno leveda nossa casa:
temos muito calor
lá fora faz frio.

A casa não luta
apenas nos conduz a fechar-se entre cortinas.

Simplificando o cosmos
na reserva da intimidade.

A casa existe sobre o tempo,
vencendo estações na eletricidade do abraço.
Um corpo que se ergue
na ânsia de ser percebido,
enquanto se espraia no maravilhar-se pela música.

Chove dentro de sua alta fantasia,
sob seu ventre,

no interior de seu semblante adormecido.

A paz sendo um corpo,
a cisterna sendo a própria chaminé.

No silencio do quarto
a própria voz se aperfeiçoa.
Na concha entreaberta do inverno
sua respiração já é sinfonia.

É doce naufragar na casa.
Sonhar telhas encontrando asas na neve
e poder sorrir sem exibir os dentes.




sábado, 22 de novembro de 2008

No jardim





“e o amor é uma arvore docemente alada
que pende no infinito de uma lagrima decaída
-um dragão aperfeiçoando-se no voou furtivo de uma garça.”






quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sede


No rio de minha cidade
não há nada alem
da correnteza.

Esse rio furtivo
Escuro
traz em suas entranhas
todo o álibi do mundo.

Sob suas pontes
os bois bailam
rugem e golpeiam
enquanto levam água
para os que têm sede.

As borboletas
encontram sua cor
ao repetir a luz do amanhecer.

Sorve-lo é afrouxar a marcha.
Mergulha-lo é tirar pedras do sapato.

Coisa leve é ser o rio
espalhar pétalas pelo aquário
sem temê-las
cair com elas.

No rio de minha cidade
não há nada alem
do sorriso de uma criança.