domingo, 17 de março de 2024

Considerações sobre o luto em Cinzas do Norte

 

A literatura é uma antiga expressão da busca humana em torno da decifração da vida e o que lembramos já é ficção. A pulsão reside nessa busca. Escritores tecem narrativas enquanto os leitores vibram por se sentirem agraciados ao reencontrar suas histórias ilustradas pelo arrebatamento da beleza estética e de algum modo relacionar suas histórias pessoais com as dos personagens.

Talvez seja oportuno pensarmos na perspectiva freudiana sobre a arte e a literatura, pois não se trata do crítico especialista circunscrito no circuito acadêmico clássico, porém, o psicanalista que comparece. É o analista Freud que submerge, tendo a iluminação criativa como uma aliada no desvelamento de nuances psíquicas, ou seja, talvez os poetas estejam em vantagem neste devir, tendo o psicanalista como aliado no percurso de elaboração que nos conduz a uma espécie de poesia prática. Ou seja, as singularidades psicológicas da obra literária nos ajudam na compreensão das tensões psíquicas.

Hoje, penso e releio Cinzas do Norte, do amazonense Milton Hatoum, romance de densidade histórica com nuances tensionais que abarcam o período da ditadura militar no Brasil, focando nas relações do personagem central, Mundo, e suas conexões parentais em conformidade com a sua sensibilidade singular que abarca questões de ordem políticas, ambientais, estéticas, sintomáticas, afetivas, entre outros aspectos interessantes. 

O próprio significante cinzas nos remete a desconstrução simbólica e nos coloca diante da temática dos lutos indentificatórios, ao proporcionar um diálogo interno com as próprias memórias do autor. 

Livro furtivamente autobiográfico relata a luta de Mundo, Raimundo, sob ecos de uma voz totalitária simbolizada por um pai opressor e de uma sociedade que não consegue encaixar o menino artista em seu seio, por não se identificar com essa “aberração”. Há um sofrimento laborioso e extenuante que dura a vida inteira. 

Nesse sentido, há uma alegoria do personagem central com a região amazônica, uma comparação rica que nos mostra o quanto o fazer artístico enriquece nossa perspectiva científica, bem como, que os saberes são grandezas complementares e não sistemas hierárquicos. 

Os lutos são sutis e nunca realizados de forma plena, o que justifica a melancolizacão dos personagens, nas vestimentas, na miséria humana, nos detritos e na destruição do espaço urbano e simbólico, na destituição de um projeto verdadeiramente amazônico e na assimilação do modelo desenvolvimentista associado ao contexto dos “grandes projetos” ditatoriais. Essas perdas sequer são elaboradas desembocando no ódio paralisado, numa espécie de síndrome do pânico social, eclodida a partir de uma agressividade represada.   

O personagem central, Mundo, como alegoria de uma região nos coloca frente a frente com a temática central dos lutos identificatórios. Diante de uma percepção sutil, de um desmoronamento simbólico que o faz adoecer de muitas perspectivas, corroborando uma analise que nos faz constatar que os lutos das identificações e suas consequências complexas não foram sequer assimilados, nomear essas perdas é um trabalho árduo e passa pela elaboração do passado, pois, sem esse trabalho, fatalmente o investimento futuro fica comprometido. A estranha trama que percorre o personagem central é marcada pelas narrativas falsas, inverídicas, cujo o centro narrativo é marcado pelas identificações negativas, um desvio libidinal que nos assombra pela inaptidão simbiótica do personagem com a vida, com o “mundo”, cujo único resgaste possível é a fuga constante, uma fuga que esbarra na certeira objeção que não há caminho possível, diante de um luto suspenso, tendo como única morada sua própria casa interior, naufragada pelo ressentimento. 


Nenhuma dor resiste a uma história de contamos sobre ela, dai reside a força da literatura e das Artes como um sistema de riqueza interpretativa, ilustrada como um estado de poesia. Talvez, essa reflexão nos ajude na percepção das coisas que querem ser percebidas.  Sim, as coisas querem ser percebidas, nos aponta Rilke:


Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. 

Tudo isto era missão”.


(texto resumido)

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